domingo, 12 de fevereiro de 2017

Provocações feministas


Vivemos numa sociedade machista e misógina que tenta camuflar esta evidência, entre outras coisas, sob um discurso publicitário midiático de amor e veneração a tudo o que envolve o universo feminino e materno. Isso se apresenta e revela nas estatísticas dos crimes de estupro e feminicídio, na violência doméstica diária e em todas as formas de silenciamento da mulher. Esta incoerência fabricada deflagra um não-entendimento por grande parte das pessoas sobre a causa feminista.

As definições de gênero modificaram-se ao longo da história. Hoje, principalmente devido às conquistas dos movimentos sociais minoritários, sobretudo o movimento feminista, essas definições encontram múltiplas variações do ponto de vista identitário, porém, há forças que atravessam camadas discursivas e das relações micropolíticas do cotidiano, operando um remanejamento conservador que faz a manutenção de certas posições ocupadas por mulheres e homens, pois na tentativa de transposição de alguns limites, ainda prevalece uma lógica binária e cristalizada.

Para as mulheres que pretendem quebrar essas definições e conquistar um território realmente livre, muito diferente daquele que lhes é oferecido e imposto, fica reservado, na maior parte das vezes, o medo e a persistente ideia de incapacidade. Há uma dupla mensagem que contém um “libere-se” juntamente com o alerta de “cuidado”. Esta dupla mensagem é quase sempre paralisante, pois confronta o desejo das mulheres por liberação com um real risco de vida e faz com que muitas de nós recuem ou aceitem uma meia-liberdade, em que ainda precisemos nos submeter às regras desse jogo desigual que nos oprime.

No livro 'Teoria King Kong' (2006), a feminista francesa Virginie Despentes nos aponta a importância de assumir este inerente risco, como parte da empreitada de “ser a mulher que se quer”. Nele, ela apresenta aspectos autobiográficos, levanta importantes questões sobre o feminismo e oferece contrapontos ao lugar vitimizado e fragilizado que o discurso dominante reserva às mulheres:

Se não avançamos em direção a esse desconhecido que é a revolução dos gêneros, sabemos, no entanto, exatamente para onde regressaremos. Um Estado todo-poderoso que nos infantiliza, que intervém – para nosso próprio bem – em todas as nossas decisões, que sob o pretexto de nos proteger melhor, nos mantém na infância, na ignorância, no medo da punição, da exclusão. O tratamento privilegiado que até aqui foi reservado às mulheres, tendo a vergonha como ponta de lança para mantê-las no isolamento, na passividade, no imobilismo, poderá se estender a todo mundo. Compreender os mecanismos da nossa inferiorização e as maneiras através das quais nós temos nos convertido em nossos maiores vigias é compreender os mecanismos de controle de toda a população. O capitalismo é uma religião igualitarista, no sentido de que nos submete a todos e leva cada um de nós a se sentir preso dentro de uma armadilha, assim como estão presas todas as mulheres.

 

Virginie também problematiza o lugar do homem, que dentro desse processo é constantemente lançado à ameaça de perda de sua virilidade e privilégios. Ela traz às claras o fato de existir pouquíssima teorização sobre as masculinidades por parte dos próprios homens, fala da ausência de discussões sobre os reais desejos masculinos e sugere que boa parte das práticas misóginas estão conectadas à profunda admiração do homem pelo homem (ou pela posição fálica) e uma suposta “obrigação de amar as mulheres”, que como consequência acentuaria as violências produzidas contra as mesmas.

Com o intuito de incrementar o olhar para esta questão específica, conectamos também o recente filme francês “Elle” (2016), que trata da história de uma empresária bem-sucedida que vivencia um estupro e que se posiciona de maneira que consideramos abarcar a problemática aqui discutida: uma personagem complexa e peculiar que, ocupando um lugar de poder e destaque de maneira singular, propicia uma relativização sobre a vitimização e a fragilidade das mulheres, propõe o engendramento de estratégias de sobrevivência, a inversão da lógica dominante e a afirmação de uma virilidade feminina possível, que não se desculpa ou pede licença, mas que, ao contrário, costura-se partindo do entendimento lúcido de uma realidade que reserva à mulher um lugar passivo e amedrontado, e que o refuta firmemente, deslizando pelas fendas e traçando novas linhas de fuga.

 
Sugerimos aqui estes dois materiais como pontos de partida e de provocação para pensarmos algumas especificidades do feminismo, no entanto, não deixaremos de pontuar que ambos trazem recortes singulares: falamos de mulheres brancas de classe média ou alta, e o fazemos por compreender que o recorte de classe, cor, orientação sexual etc traz elementos para posicionarmos a discussão e não incorrer em leviandade, pois temos o desejo de trazer para o debate as peculiares de cada recorte, que ao mesmo tempo que possuem seus traços próprios, fazem parte de um movimento maior e que precisa se fortalecer para resistir de maneira potente e realmente revolucionária.

(Juliana Felipe e Rosângela Cavalcante)

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