sábado, 25 de fevereiro de 2017

Sobre a solitude

"Na solitude podemos nos tornar íntimos de nós mesmos em nossa constante transformação e em nossos movimentos imprevistos e então celebrar o encontro com o outro, seja o aliado que nos faz sentir mais fortalecidos ou o antagonista que nos faz crescer"
 (Ana Thomaz)
 

QUANDO EXISTIR É JOGAR: Um convite ao encontro psicoterápico


 

“O que eu faço agora pode produzir em mim areia movediça ou pista de dança” (Luiz Fuganti)

        Em nossas relações cotidianas nos vemos imersos numa miscelânea de discursos e práticas que nos atravessam cirurgicamente e que podem produzir efeitos enfraquecedores no nosso sentir e fragmentadores no nosso fazer, principalmente por partirem, de maneira opressora e dominante, de um modo de vida capitalístico pleno de cristalizações e atolamentos em sua forma de operar, que universaliza a subjetividade humana, fazendo a gestão de nossos desejos e liberdades, capturando-os e se sobrepondo às singularidades.

       Os efeitos desses atravessamentos apresentam-se como sintomas paralisantes em nós e nos impedem de criar outras formas de existir, de encontrar ou produzir saídas, de nos vermos múltiplos e de conquistarmos a capacidade de experimentar sensivelmente o que há entre nós e o mundo, de maneira a multiplicar as intensidades nessas passagens, nesses contatos e contágios. Acompanhar e estimular essa possível abertura para a invenção de outros modos de existir é o principal foco de um bom encontro psicoterápico.

      Um bom encontro psicoterápico apresenta-se como um convite à transmutação de estados culpabilizantes e/ou ressentidos em responsabilização e cuidado de si, não como moralizantes ou meros organizadores e sim como meio para a produção de possibilidades inéditas de pensar e agir em sintonia com uma autonomia a ser tecida no entre, na fenda intensiva dos acontecimentos, em que “jogar” possa ser verbo de expansão e alargamento do existir, via de afirmação de uma vida que se produza alegre sem se limitar a planos como ganhar e perder, mas que se mantenha ativa e pulsante enquanto processo brincante, e que vá selecionando as composições mais intensas e preenchidas de sentido.

(Juliana Felipe)  

         

           

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Provocações feministas


Vivemos numa sociedade machista e misógina que tenta camuflar esta evidência, entre outras coisas, sob um discurso publicitário midiático de amor e veneração a tudo o que envolve o universo feminino e materno. Isso se apresenta e revela nas estatísticas dos crimes de estupro e feminicídio, na violência doméstica diária e em todas as formas de silenciamento da mulher. Esta incoerência fabricada deflagra um não-entendimento por grande parte das pessoas sobre a causa feminista.

As definições de gênero modificaram-se ao longo da história. Hoje, principalmente devido às conquistas dos movimentos sociais minoritários, sobretudo o movimento feminista, essas definições encontram múltiplas variações do ponto de vista identitário, porém, há forças que atravessam camadas discursivas e das relações micropolíticas do cotidiano, operando um remanejamento conservador que faz a manutenção de certas posições ocupadas por mulheres e homens, pois na tentativa de transposição de alguns limites, ainda prevalece uma lógica binária e cristalizada.

Para as mulheres que pretendem quebrar essas definições e conquistar um território realmente livre, muito diferente daquele que lhes é oferecido e imposto, fica reservado, na maior parte das vezes, o medo e a persistente ideia de incapacidade. Há uma dupla mensagem que contém um “libere-se” juntamente com o alerta de “cuidado”. Esta dupla mensagem é quase sempre paralisante, pois confronta o desejo das mulheres por liberação com um real risco de vida e faz com que muitas de nós recuem ou aceitem uma meia-liberdade, em que ainda precisemos nos submeter às regras desse jogo desigual que nos oprime.

No livro 'Teoria King Kong' (2006), a feminista francesa Virginie Despentes nos aponta a importância de assumir este inerente risco, como parte da empreitada de “ser a mulher que se quer”. Nele, ela apresenta aspectos autobiográficos, levanta importantes questões sobre o feminismo e oferece contrapontos ao lugar vitimizado e fragilizado que o discurso dominante reserva às mulheres:

Se não avançamos em direção a esse desconhecido que é a revolução dos gêneros, sabemos, no entanto, exatamente para onde regressaremos. Um Estado todo-poderoso que nos infantiliza, que intervém – para nosso próprio bem – em todas as nossas decisões, que sob o pretexto de nos proteger melhor, nos mantém na infância, na ignorância, no medo da punição, da exclusão. O tratamento privilegiado que até aqui foi reservado às mulheres, tendo a vergonha como ponta de lança para mantê-las no isolamento, na passividade, no imobilismo, poderá se estender a todo mundo. Compreender os mecanismos da nossa inferiorização e as maneiras através das quais nós temos nos convertido em nossos maiores vigias é compreender os mecanismos de controle de toda a população. O capitalismo é uma religião igualitarista, no sentido de que nos submete a todos e leva cada um de nós a se sentir preso dentro de uma armadilha, assim como estão presas todas as mulheres.

 

Virginie também problematiza o lugar do homem, que dentro desse processo é constantemente lançado à ameaça de perda de sua virilidade e privilégios. Ela traz às claras o fato de existir pouquíssima teorização sobre as masculinidades por parte dos próprios homens, fala da ausência de discussões sobre os reais desejos masculinos e sugere que boa parte das práticas misóginas estão conectadas à profunda admiração do homem pelo homem (ou pela posição fálica) e uma suposta “obrigação de amar as mulheres”, que como consequência acentuaria as violências produzidas contra as mesmas.

Com o intuito de incrementar o olhar para esta questão específica, conectamos também o recente filme francês “Elle” (2016), que trata da história de uma empresária bem-sucedida que vivencia um estupro e que se posiciona de maneira que consideramos abarcar a problemática aqui discutida: uma personagem complexa e peculiar que, ocupando um lugar de poder e destaque de maneira singular, propicia uma relativização sobre a vitimização e a fragilidade das mulheres, propõe o engendramento de estratégias de sobrevivência, a inversão da lógica dominante e a afirmação de uma virilidade feminina possível, que não se desculpa ou pede licença, mas que, ao contrário, costura-se partindo do entendimento lúcido de uma realidade que reserva à mulher um lugar passivo e amedrontado, e que o refuta firmemente, deslizando pelas fendas e traçando novas linhas de fuga.

 
Sugerimos aqui estes dois materiais como pontos de partida e de provocação para pensarmos algumas especificidades do feminismo, no entanto, não deixaremos de pontuar que ambos trazem recortes singulares: falamos de mulheres brancas de classe média ou alta, e o fazemos por compreender que o recorte de classe, cor, orientação sexual etc traz elementos para posicionarmos a discussão e não incorrer em leviandade, pois temos o desejo de trazer para o debate as peculiares de cada recorte, que ao mesmo tempo que possuem seus traços próprios, fazem parte de um movimento maior e que precisa se fortalecer para resistir de maneira potente e realmente revolucionária.

(Juliana Felipe e Rosângela Cavalcante)