Vivemos numa sociedade machista e
misógina que tenta camuflar esta evidência, entre outras coisas, sob um discurso publicitário
midiático de amor e veneração a tudo o que envolve o universo feminino e
materno. Isso se apresenta e revela nas estatísticas dos crimes de estupro e feminicídio,
na violência doméstica diária e em todas as formas de silenciamento da mulher.
Esta incoerência fabricada deflagra um não-entendimento por grande parte das pessoas sobre a causa feminista.
As definições de gênero modificaram-se
ao longo da história. Hoje, principalmente devido às conquistas dos movimentos sociais
minoritários, sobretudo o movimento feminista, essas definições encontram múltiplas
variações do ponto de vista identitário, porém, há forças que atravessam camadas
discursivas e das relações micropolíticas do cotidiano, operando um remanejamento
conservador que faz a manutenção de certas posições ocupadas por mulheres e
homens, pois na tentativa de transposição de alguns limites, ainda prevalece
uma lógica binária e cristalizada.
Para as mulheres que pretendem
quebrar essas definições e conquistar um território realmente livre, muito
diferente daquele que lhes é oferecido e imposto, fica reservado, na maior
parte das vezes, o medo e a persistente ideia de incapacidade. Há uma dupla
mensagem que contém um “libere-se” juntamente com o alerta de “cuidado”. Esta
dupla mensagem é quase sempre paralisante, pois confronta o desejo das mulheres
por liberação com um real risco de vida e faz com que muitas de nós recuem ou
aceitem uma meia-liberdade, em que ainda precisemos nos submeter às regras
desse jogo desigual que nos oprime.
No livro 'Teoria King Kong' (2006), a
feminista francesa Virginie Despentes nos aponta a importância de assumir este
inerente risco, como parte da empreitada de “ser a mulher que se quer”. Nele,
ela apresenta aspectos autobiográficos, levanta importantes questões sobre o
feminismo e oferece contrapontos ao lugar vitimizado e fragilizado que o
discurso dominante reserva às mulheres:
Se não avançamos
em direção a esse desconhecido que é a revolução dos gêneros, sabemos, no
entanto, exatamente para onde regressaremos. Um Estado todo-poderoso que nos
infantiliza, que intervém – para nosso próprio bem – em todas as nossas
decisões, que sob o pretexto de nos proteger melhor, nos mantém na infância, na
ignorância, no medo da punição, da exclusão. O tratamento privilegiado que até
aqui foi reservado às mulheres, tendo a vergonha como ponta de lança para
mantê-las no isolamento, na passividade, no imobilismo, poderá se estender a
todo mundo. Compreender os mecanismos da nossa inferiorização e as maneiras
através das quais nós temos nos convertido em nossos maiores vigias é compreender
os mecanismos de controle de toda a população. O capitalismo é uma religião
igualitarista, no sentido de que nos submete a todos e leva cada um de nós a se
sentir preso dentro de uma armadilha, assim como estão presas todas as
mulheres.
Virginie também problematiza o lugar
do homem, que dentro desse processo é constantemente lançado à ameaça de perda
de sua virilidade e privilégios. Ela traz às claras o fato de existir
pouquíssima teorização sobre as masculinidades por parte dos próprios homens,
fala da ausência de discussões sobre os reais desejos masculinos e sugere que
boa parte das práticas misóginas estão conectadas à profunda admiração do homem
pelo homem (ou pela posição fálica) e uma suposta “obrigação de amar as
mulheres”, que como consequência acentuaria as violências produzidas contra as
mesmas.
Com o intuito de incrementar o olhar
para esta questão específica, conectamos também o recente filme francês “Elle”
(2016), que trata da história de uma empresária bem-sucedida que vivencia um
estupro e que se posiciona de maneira que consideramos abarcar a problemática
aqui discutida: uma personagem complexa e peculiar que, ocupando um lugar de
poder e destaque de maneira singular, propicia uma relativização sobre a
vitimização e a fragilidade das mulheres, propõe o engendramento de estratégias
de sobrevivência, a inversão da lógica dominante e a afirmação de uma
virilidade feminina possível, que não se desculpa ou pede licença, mas que, ao
contrário, costura-se partindo do entendimento lúcido de uma realidade que
reserva à mulher um lugar passivo e amedrontado, e que o refuta firmemente,
deslizando pelas fendas e traçando novas linhas de fuga.
Sugerimos aqui estes dois materiais
como pontos de partida e de provocação para pensarmos algumas especificidades do
feminismo, no entanto, não deixaremos de pontuar que ambos trazem recortes singulares: falamos de mulheres brancas de classe média ou alta, e o fazemos por compreender
que o recorte de classe, cor, orientação sexual etc traz elementos para
posicionarmos a discussão e não incorrer em leviandade, pois temos o desejo de
trazer para o debate as peculiares de cada recorte, que ao mesmo tempo que
possuem seus traços próprios, fazem parte de um movimento maior e que precisa
se fortalecer para resistir de maneira potente e realmente revolucionária.
(Juliana Felipe e Rosângela Cavalcante)