terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Devir-Bowie e Devir-Manoel: presentes-brinquedo

Uma vez que esta paragem é onde pretendo arejar e turbinar as sensações, percepções e pensamentos que povoam minha prática clínica, alerto que poderei eleger temas sozinhos, temas acompanhados e temas sem tema.


Vou pegar Bowie. David Bowie. Um homem. Um homem que não carecia dessa caixa “homem” para morar dentro. Um homem que olhou a morte nos olhos, de véspera (e de véspera da véspera) e cantou pra ela. Um homem rotulado camaleão, que morreu muitas vezes pra poder de fato viver enquanto vivia. Um homem em que flamejava um devir. Um devir-criança, sobretudo, uma vez que a juventude de seus passos estava justamente em não negligenciar suas curiosidades e intensidades, inclusive levando-as aos limites mais extremos. Um homem que seguiu criando, inventando e oferecendo algo ao mundo, mesmo quando já sentia muito forte o cheiro da intempestiva.

Pego carona nessa multiplicidade-Bowie para pensar as MORTES. Elas, as insensatas, já nos colocam muito cedo, já na infância, cara a cara com o devir, que nos impõe efetuações e modificâncias. No entanto, algumas vezes, experimentamos essas mortes tortamente, e recuando, bloqueamos ou temos bloqueada nossa produção desejante. Sequencialmente caímos no buraco das etiquetas: adapte-se/adeque-se/corresponda/atenda. O que me importa aqui é marcar que há uma profunda diferença entre sentir-se desconfortável com o existir e calçar um modelo para apaziguar, dar trégua à vida, e sentir-se desconfortável com o existir e inventar jeitos sempre novos, sempre mais potentes, para enchê-la de sentidos (não de significados).

Este segundo caminho não é caminho, é degrau peça-única, é pedaço de pista, é asfalto novo, é paralelepípedo recém-colocado, pois não está modelado, há de ser singularmente inventado por cada um, a cada passo. Nesse pisar, as nuances solitárias saltitam, e junto delas as inúmeras possibilidades de conexões e encontros. É pisar colado na experimentação, que implica risco e abertura (também prudência) e a conquista de si mesmo, que brota do assíduo comparecimento às próprias responsabilidades (e não obrigações). Esse modo de vida implicado e intenso (portanto, alegre), pede a contemplação de vazios, como a poesia de Manoel de Barros, que aponta para esses vazios, “que são maiores e até infinitos”. O poeta descobriu que “escrever poderia ser o mesmo que carregar água na peneira”, descobriu que escrever maquinava seu desejo, o colocava em devir. Talvez este seja um presente-brinquedo de Manoel: instigar a viver como quem carrega água na peneira... em fluxo e em criação. Ele mesmo escreveu: “Tudo que eu não invento é falso”. Por que aquilo que não inventamos para nós mesmos haveria de ser verdadeiro?

Pode parecer caótico demais, mas é um modo de cuidar de si, do próprio corpo, das próprias relações e encontros, partindo das afecções e percepções paridas nas experimentações, a fim de ir criando superfície, ir criando a própria língua (das composições com a língua própria e as estrangeiras), ir dando lugar a um desejo produtor que se expande em sua própria direção, e que dessa forma ultrapassa limites antigos, trepa no muro e cai do outro lado, vai lá ver o que há de bom e o que há de ‘nem tão bom’.

(Juliana Felipe)


     

domingo, 10 de janeiro de 2016

“Dar nome aos bois”, para depois...


Se o encontro terapêutico me faz engendrar como cartógrafa um campo afetivo e, em dado momento, paciente e eu compartilhamos nuances caóticas de determinadas experiências, eu, afetada diretamente por essas nuances, e percebendo os excessos e transbordamentos gerando paralisias e atolamentos, deparo-me com o imperativo de “dar nome aos bois” que se apresentam, bois de vários tipos, tamanhos e texturas, que, emaranhados e enredados, não se veem bois, e estão a tecer uma teia grudenta.

Com o corpo implicado, portando voz cuidadosa e fluida, guiada por micropercepções trançadas em formas claras, ir esboçando (com lápis preto, nunca com caneta) algum contorno e produzindo alguma qualidade de contensão, que se fará não para cristalizar quadros e muito menos interpretar o vivido, mas para descongestionar, desobstruir as passagens, e permitir que novas multiplicidades as preencham. Usar um tipo especial de sensibilidade para fechar e abrir com o mesmo movimento, solapando as chances de lançamento de uma encorpada angústia num código meramente classificatório e categorizante, que seria gerador de alívio, mas não de abertura para as múltiplas saídas a serem percebidas e/ou produzidas.

Agindo como uma ponta de agulha quente que facilita o vazamento da ferida purulenta, mas não para cicatriza-la o mais rápido possível e sim para que possa realmente vazar.

“Dar nome aos bois” para depois... Conectá-los às zonas de intensidade da manada.


(Juliana Felipe)