Uma vez que esta paragem é onde pretendo arejar e turbinar as
sensações, percepções e pensamentos que povoam minha prática clínica, alerto
que poderei eleger temas sozinhos, temas acompanhados e temas sem tema.
Vou pegar Bowie. David Bowie. Um homem. Um homem que não
carecia dessa caixa “homem” para morar dentro. Um homem que olhou a morte nos
olhos, de véspera (e de véspera da véspera) e cantou pra ela. Um homem rotulado
camaleão, que morreu muitas vezes pra poder de fato viver enquanto vivia. Um
homem em que flamejava um devir. Um devir-criança, sobretudo, uma vez que a
juventude de seus passos estava justamente em não negligenciar suas curiosidades
e intensidades, inclusive levando-as aos limites mais extremos. Um homem que
seguiu criando, inventando e oferecendo algo ao mundo, mesmo quando já sentia
muito forte o cheiro da intempestiva.
Pego carona nessa multiplicidade-Bowie para pensar as MORTES.
Elas, as insensatas, já nos colocam muito cedo, já na infância, cara a cara com
o devir, que nos impõe efetuações e modificâncias. No entanto, algumas vezes,
experimentamos essas mortes tortamente, e recuando, bloqueamos ou temos
bloqueada nossa produção desejante. Sequencialmente caímos no buraco das etiquetas: adapte-se/adeque-se/corresponda/atenda. O que me importa aqui é marcar que há uma profunda diferença entre sentir-se desconfortável com o existir e calçar
um modelo para apaziguar, dar trégua à vida, e sentir-se desconfortável com o
existir e inventar jeitos sempre novos, sempre mais potentes, para enchê-la de
sentidos (não de significados).
Este segundo caminho não é caminho, é degrau peça-única, é
pedaço de pista, é asfalto novo, é paralelepípedo recém-colocado, pois não está
modelado, há de ser singularmente inventado por cada um, a cada passo. Nesse
pisar, as nuances solitárias saltitam, e junto delas as inúmeras possibilidades
de conexões e encontros. É pisar colado na experimentação, que implica risco e
abertura (também prudência) e a conquista de si mesmo, que brota do assíduo
comparecimento às próprias responsabilidades (e não obrigações). Esse modo de
vida implicado e intenso (portanto, alegre), pede a contemplação de vazios, como
a poesia de Manoel de Barros, que aponta para esses vazios, “que são maiores e
até infinitos”. O poeta descobriu que “escrever poderia ser o mesmo que
carregar água na peneira”, descobriu que escrever maquinava seu desejo, o
colocava em devir. Talvez este seja um presente-brinquedo de Manoel: instigar a
viver como quem carrega água na peneira... em fluxo e em criação. Ele mesmo
escreveu: “Tudo que eu não invento é falso”. Por que aquilo que não inventamos
para nós mesmos haveria de ser verdadeiro?
Pode parecer caótico demais, mas é um modo de cuidar de si,
do próprio corpo, das próprias relações e encontros, partindo das afecções e
percepções paridas nas experimentações, a fim de ir criando superfície, ir criando
a própria língua (das composições com a língua própria e as estrangeiras), ir dando lugar a um desejo produtor que se expande em sua
própria direção, e que dessa forma ultrapassa limites antigos, trepa no muro e
cai do outro lado, vai lá ver o que há de bom e o que há de ‘nem tão bom’.
(Juliana Felipe)
(Juliana Felipe)