quarta-feira, 8 de março de 2017

Não se desculpar, pedir licença ou se constranger


Dia de luta, de afinar o instrumento-corpo, de pensar o caminho, fortalecer e resistir. Sim. De identificar os atravessamentos discursivos que ainda se impõem e impedem de avançar. De fazer novas e melhores alianças. De bater a porta na cara dos julgamentos e julgadores. De examinar a quantas andam nossas sensibilidades e vigiar nossos pudores. De cuidar dos efeitos das violências em nós e evitar que produzam ressentimentos estagnantes, e sim movimentos lançadores, flechadores, inéditos, ousados. Como disseram Deleuze e Guattari em Mil Platôs, “é preciso conceber uma política feminina molecular, que insinua-se nos afrontamentos molares e passa por baixo, ou através”. É preciso furar os muros, encontrar tijolos soltos, inventá-los, produzi-los. Ocupar espaços, preenchê-los de sentidos, despertá-los para uma revolução necessária, “produzir um devir-mulher, com átomos de feminilidade capazes de percorrer e de impregnar todo um campo social, e de contaminar os homens, de tomá-los num devir” (D&G). Recuperar e conquistar pra si o corpo que nos é roubado, efetuá-lo em cada fresta, privilegiar a ação. E para isso compreender a fundo tudo aquilo que se coloca como rígido obstáculo, tudo que é sentido cotidianamente, mas nem sempre nomeado. Contarei com Virginie Despentes (‘Teoria King Kong’) e seus rasgos providenciais, para desenhar minimamente essa parede a ser rachada. Ela fala da ARTE DO SERVILISMO, que muitos chamam de sedução da mulher e que tentam transformar em algo glamouroso, mas que quase sempre trata-se de:

SE HABITUAR A SE COMPORTAR COMO INFERIOR.

ENTRAR NUM CÔMODO, OLHAR SE EXISTEM HOMENS PRESENTES, DESEJAR AGRADÁ-LOS.

NÃO FALAR MUITO ALTO.

NÃO SE EXPRESSAR NUM TOM CATEGÓRICO.

NÃO SE SENTAR COM AS PERNAS ABERTAS, COM MAIS COMODIDADE.

NÃO SE EXPRESSAR NUM TOM AUTORITÁRIO.

NÃO FALAR DE DINHEIRO.

NÃO DESEJAR CONQUISTAR PODER.

NÃO DESEJAR OCUPAR UM POSTO DE AUTORIDADE.

NÃO PROCURAR PRESTÍGIO.

NÃO RIR MUITO ALTO.

NÃO SER MUITO ENGRAÇADA.

AGRADAR OS HOMENS É UMA ARTE COMPLICADA QUE EXIGE QUE APAGUEMOS TUDO QUE FAÇA REFERÊNCIA AO DOMÍNIO DA POTÊNCIA.

(...)

SER COMPLEXADA, UMA COISA TIPICAMENTE FEMININA.

APAGADA.

ABRIR BEM OS OUVIDOS.

NÃO BRILHAR MUITO INTELECTUALMENTE.

SER CULTA APENAS O SUFICIENTE PARA ENTENDER O QUE O BONITÃO TEM PARA CONTAR.

FALAR MUITO É FEMININO.

TUDO O QUE NÃO DEIXA RASTRO.

O QUE É DOMÉSTICO, O QUE SE FAZ TODOS OS DIAS, O QUE NÃO TEM NOME.

SEM GRANDES DISCURSOS, SEM GRANDES LIVROS, SEM GRANDES COISAS.

APENAS PEQUENAS COISAS.

FOFINHAS. FEMININAS.

MAS BEBER: VIRIL.

TER AMIGOS: VIRIL.

FAZER PIADA: VIRIL.

GANHAR MUITA GRANA: VIRIL.

TER UM CARRÃO: VIRIL.

SE COMPORTAR DE QUALQUER JEITO: VIRIL.

DAR RISADA FUMANDO UM BASEADO: VIRIL.

TER ESPÍRITO DE COMPETIÇÃO: VIRIL.

SER AGRESSIVO: VIRIL.

QUERER TRANSAR COM TODO MUNDO: VIRIL.

 RESPONDER COM BRUTALIDADE A QUALQUER COISA QUE TE AMEACE: VIRIL.

NÃO GASTAR TEMPO SE ARRUMANDO DE MANHÃ: VIRIL.

VESTIR ROUPAS QUE SÃO PRÁTICAS: VIRIL.

TUDO QUE É ENGRAÇADO DE SE FAZER É VIRIL,

TUDO QUE NOS PERMITE SOBREVIVER É VIRIL,

TUDO O QUE NOS FAZ GANHAR TERRENO É VIRIL.”  (Teoria King Kong, de Virginie Despentes)

Não se desculpar, pedir licença ou se constranger por ser mulher e afirmar seus desejos e seu espaço: desafio diário e vital. Sigamos.
 

quinta-feira, 2 de março de 2017

Combinações

"O grande mar, eu vou aprender a nadar, o que é esse aprendizado? Eu não posso impor ao grande mar os ímpetos dos meus braços e pernas, que aí eu afundo. Eu tenho que combinar minhas forças, meus gestos, com os gestos e os movimentos das ondas".

(Trecho da aula "Ética em Deleuze" do professor Luiz Orlandi)